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A Canção da Saudade











Às vezes, a saudade vem suave, escondida dentro de uma melodia antiga. Não pede licença. Apenas entra. Um acorde toca no rádio, ou numa playlist que você nem lembrava de ter feito — e ali, no primeiro acorde, você é transportado. A alma sabe o caminho. O coração também. E você volta.

Volta para a cozinha com cheiro de tempero e carinho. Para a toalha de mesa com florzinhas. Para o barulho do rádio ligado bem baixinho na sala. Para os chinelos arrastando no chão. Volta para o abraço de mãe — aquele que não precisava de palavras, só de presença. Aquela presença que curava até o que a gente nem sabia que doía.

Há uma memória que vive no corpo. Ela não se apaga com o tempo. Ela está no gosto das coisas simples, no cheiro de roupa limpa, no jeito de dobrar os panos de prato. Está no gesto automático de cuidar de alguém, no impulso de proteger, no reflexo de dizer “leva um casaco”. Essas coisas pequenas, que pareciam bobas, eram — e ainda são — manifestações de um amor tão sagrado que a gente só entende quando está longe. Ou quando não tem mais.

A música segue tocando. E você sente um nó na garganta. Uma vontade de voltar pra aquela época em que tudo parecia mais calmo, mais certo, mais cheio de sentido. Talvez fosse a infância. Ou talvez fosse o fato de estar perto dela. Porque mãe é isso: é o lugar onde o mundo fazia sentido, mesmo quando tudo lá fora parecia confuso.

E mesmo que a sua história não tenha sido perfeita, mesmo que esse laço tenha doído em algum ponto — ainda assim, há algo nela que é base, raiz, origem. Há um amor que se manifesta até na ausência. Há força, mesmo nas falhas. Há luz, mesmo nas sombras.

Mãe é direção que a gente não vê, mas sente. É intuição. É proteção que mora nos bastidores da vida. Quantas vezes você não desviou de algo que nem sabia que podia te machucar? Quantas vezes um silêncio foi resposta? Quantas vezes você sentiu coragem sem saber de onde veio? Talvez tenha sido ela. Mesmo que você não tenha mais a chance de ouvir sua voz, talvez tenha sido ela — sussurrando por dentro, como uma estrela que não se vê, mas que nunca deixou de brilhar.

O tempo passa. A gente cresce. A gente tenta ser forte. Mas há uma hora, todos voltamos. Nem que seja por um instante. Voltamos para dentro. Voltamos para aquele cheiro de bolo no forno. Para aquela música de domingo. Para o beijo na testa. Para o “se cuida, meu filho” dito com os olhos.

É ali que mora a essência do amor. No que foi doado sem pedir nada em troca. No que foi ensinado com o exemplo. No que ficou gravado, mesmo que a gente não tenha percebido na hora.

Se você ainda pode ligar para sua mãe hoje, faça isso. Fale. Diga o que talvez nunca tenha dito. E se ela já partiu, acenda uma vela dentro de você. Honre. Sinta. Agradeça. Porque ela ainda vive em cada decisão que você toma com o coração. Em cada escolha que carrega verdade. Em cada gesto de cuidado que você tem com alguém. Ela vive em você. Sempre viveu.

E talvez, agora, você esteja pronto para perceber.


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