Memórias de Uma Mulher Inesquecível
Dizem que sogra não vira ex. Talvez porque mãe, mesmo que emprestada, deixa raízes onde planta amor — mesmo disfarçado de rispidez ou silêncio. E ela era isso: uma mulher antes de qualquer rótulo. Antes de sogra, ela era mãe. Antes de ser mãe, era filha. E antes de ser filha, era só ela — falastrona e vaidosa, intensa como samba de raiz, com um riso fácil e uma alma que gargalhava como quem se vinga da vida.
Tinha olhos atentos, de quem vê antes. Uma mulher sagaz, rápida, inteligente. Não era qualquer uma. Não se confundia com miudezas — mas nelas morava a sua essência. Sua força não vinha da dureza, mas do que teve que engolir em silêncio para continuar. Eu, com avançados 22 anos e ilusões demais para quem sabia de menos, achava que entendia o mundo. Ela já tinha vivido três ou quatro.
Quando cheguei na vida dela, ela era muralha. Daquelas que não deixam passar nem vento. Mas com o tempo, percebi: por trás daquele concreto, morava uma mulher que, em algum tempo distante, foi folha ao vento — leve, sonhadora, cheia de planos que talvez o mundo não deixou acontecer.
Foi deixada com três filhos, ainda pequenos, quando o Brasil desmoronava junto com suas economias. Corria o início dos anos 90 — e a tal “recessão” que diziam por aí era na verdade um golpe financeiro: Collor, o bloqueio das poupanças, o susto de acordar e não ter mais nada. E ela? Seguiu. Vendia enciclopédias — Barsa — aquele Google de papel que só quem viveu sabe o peso. Ia de porta em porta, andava por lugares que o medo morava, mas o pão era mais urgente. Foi ferida, violentada — por algum infeliz, no breu de uma rua qualquer e não é no sentido figurado. E mesmo assim, no dia seguinte, levantou.
Não por coragem — por necessidade.
Ela não pausava. Não dava tempo. A vida não esperava. E ela tinha que continuar.
Virou projeto: projetista de móveis planejados. Estava sempre atenta, ótima em matemática, trabalhava em shopping, em pé, falando com estranhos como quem já sabia tudo de todos. O trabalho era seu palco, sua máscara. Era onde ela sabia lidar com o mundo. Uma mulher de camadas: forte, doce, impaciente, divertida, afiada. Com temperamento nem sempre compreensível, daquelas que parece exagero, mas era só a forma que ela encontrou de se lembrar que ainda existia por dentro.
Gostava de samba. Sabia sambar — com gosto. Daquelas que jogam o ombro pra frente e o olhar pra longe. E a música... ah, a música. "Tá Escrito", do Revelação, parecia sobre ela. Sabia gargalhar de verdade. Daquelas gargalhadas que saem do peito e contagiam a alma de quem está perto. Nada de risinho educado. Era gargalhada de quem se ama, mesmo tendo passado por tanta coisa que ninguém deveria.
Dormia às vezes com um calmante leve — quando os dramas familiares batiam forte. Mas no dia seguinte, novamente, em pé. Mulher de múltiplos amores, de tentativas sinceras e corações partidos. Mulher que amava profundamente, como se amar fosse sempre um risco — e ela escolhesse correr.
Foi numa Páscoa qualquer. Comprei dois ovos: um ridiculamente pequeno, quase debochado, e outro, o maior da loja, de marca, como o pessoal das antigas classificava. Sabia que aquilo seria mais que presente. Era uma armadilha boa, uma brincadeira do coração.
Entreguei o pequeno primeiro. Ela tirou da sacola, olhou com olhos surpresos e disse:
"Minha filha… você adoçou a minha vida hoje."
Ali, ela voltou a ser menina. Uma menininha que nunca tinha ganho um ovo de Páscoa. Com olhos de surpresa, de ternura, de quem não acreditava no gesto. Foi então que, sem uma palavra, entreguei o grandão. E ela... parou.
Ficou em estado de choque.
Não era só pelo chocolate. Era pelo que aquilo dizia. Que alguém pensou nela. Que alguém a viu. Que alguém a tratou como quem merece carinho, e não apenas respeito.
Ela disse:
Você me deu duas coisas: o presente que eu nunca recebi, um ovo de páscoa. E a alegria de ser lembrada e de entender que eu posso querer sim, merecer receber mais.
Eu abracei ali a criança dela. Aquela que estava intacta em algum canto do peito, esperando ser chamada de volta. Aquela que, mesmo depois de tudo, ainda sabia sentir. E eu? Me senti privilegiada. Porque naquela mulher feita de concreto e ferida, morava uma menina doce. Que ria alto. Que dançava samba. Que ousava, uma tentante. Que amava errado, mas amava muito. E que, no fundo, só queria ser feliz com o que fosse possível.
Ela partiu. Há pouco. Partiu como quem muda de dimensão. Como quem fecha a porta de casa e deixa a luz acesa pra avisar que vai voltar em outra forma. Porque ela vive em todos os dela, sem dúvidas. E viverá em tudo que adoçar outras vidas com pequenos gestos.
Às vezes, um mini ovo de Páscoa muda o rumo de um dia de alguém. Às vezes, a chance de ouvir alguém dizer “você me viu” é o que basta para sarar feridas antigas. Às vezes, tudo que uma mulher precisa é não ser esquecida.
Hoje, escrevo pra te dizer: se você puder fazer um gesto por alguém — faça. Não importa se é pequeno. Faça mesmo assim. Porque pode ser que você esteja entregando mais que um presente. Pode ser que você esteja devolvendo a alguém a própria infância.
E se não der certo… tudo bem. Como ela dizia, com olhar sábio, café preto e fresquinho e cigarro entre os dedos:
“Vai lá e tenta. Se não der certo… ao menos você sabe que tentou.”
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