Viajamos como quem retorna a um sonho antigo. Era a casa da minha avó. A primeira vez desde que minha mãe havia mudado de estado — com meu pai, comigo ainda bebê nos braços. Eu tinha dois anos quando partimos. Agora, com pouco mais de cinco, retornava não só à casa, mas a alguém de quem eu não tinha um forte registro. E ainda assim, algo em mim já reconhecia tudo aquilo. O corpo pequeno de criança sabia — como quem se lembra por dentro.
O quintal era um poema empoeirado de verão. Pequeno parreiral, uvas miúdas de um roxo quase negro, doces como o riso da infância, recém-colhidas, quase derretendo na língua. Tinha também as hortênsias… ah, as hortênsias. Um azul quase impossível, como se fossem feitas da matéria dos sonhos bons. Como se cada florzinha — tão minúscula — fosse uma gota de amor que só as avós sabem cultivar.
Ali também morava um sabor que nunca mais encontrei: a geleia de uvas da minha avó. Feita daquelas mesmas uvinhas do quintal, tinha o gosto mais gostoso de geleia de uva que existiu — talvez porque estivesse no fundo mais fundo das memórias. Era o gosto de um tempo que não volta, mas que ficou para sempre.
Era uma manhã ensolarada, dessas que parecem durar mais tempo dentro da gente. Teve pão caseiro saindo do forno, cheiro de infância recém-assada. Ali, na varanda, mãos que sabiam medir a farinha com a alma. E eu entendi, com olhos atentos, que era dali que minha mãe aprendera. O pão, o silêncio, o gesto de guardar o mundo dentro de casa. Tudo era continuação. Tudo era raiz. Tudo era honrar.
Minha avó me chamou de ladinho e me entregou um pacotinho modesto, com um pano de prato dobrado. Era claro, com desenhos coloridos de colheres, panelas, bules, açúcar, fogão… a cozinha em tecido. Um pedaço do lar, bordado de afeto. Ela fez questão de que eu também tivesse o meu — como as outras netas. Era uma maneira de dizer: “você também pertence a isso aqui”. O pano ficou com minha mãe, e foi usado por anos. E eu amava. Amava ver aquele pano cobrindo coisas na cozinha — arroz pronto, bolo de sábado, pão quentinho na cesta. Era como se minha avó estivesse ali, de canto de olho, sorrindo por dentro.
Passava Que Rei Sou Eu? na televisão. Diziam que era uma novela debochada, até imoral, mas eu não lembro da trama. Só da voz firme da minha avó pedindo silêncio — o olhar parado, concentrado, como quem assiste à própria vida em pedaços de ficção. Ela gostava de silêncio. Mas não qualquer silêncio. Era o silêncio que escuta, que acolhe. O silêncio necessário para quem viveu muito.
Ela tinha manias que viraram doutrina de amor. Apagava-se a luz de um cômodo assim que se saía dele. Não por economia apenas. Era hábito. Era disciplina. Mas mais do que isso — era cuidado. Um gesto simples, aprendido talvez no susto da vida. Viúva aos 43, com filhos adolescentes e outros pequenos. Minha mãe, a caçula, com 17 dias de nascida. Pensa só. Crianças não nascem sabendo ficar quietas. Mas ela ensinava com o olhar. E o mundo obedecia. Talvez tenha sido esse silêncio, junto ao gesto de apagar as luzes, seu modo de manter a família em pé. De manter aceso o que importa.
Ela nunca teve outro amor. Aquele foi o único. Amor de raiz funda, de pedra basilar. Ficou viúva, mas permaneceu inteira. Era uma mulher reservada, de sorriso contido, do tipo que não desperdiça palavra nem gesto — como quem vê longe, como quem vê dentro. Desses olhos que atravessam a pele e alcançam a alma.
A casa era pequena, mas parecia conter o mundo inteiro. Uma cidadezinha onde todos sabiam tudo de todos — do filho ao pai, ao avô — como um livro oral que se passa em causos e prosas. Foram poucos dias, mas bastaram. A memória não mede tempo em horas — mede em intensidade. E eu me lembro dela, acenando quando o táxi partia. Mãos firmes no portão de metal, grama baixinha aparada com zelo, as hortênsias rosadas ladeando a ruazinha de pedras. Estávamos indo embora, sim. Mas ela vinha junto. Não no carro. Mas no feijão que minha mãe preparava depois. No modo como ela punha a mesa. No cuidado com a toalha. No jeitinho de alinhar os talheres, de ajeitar os panos.
Repetimos sem perceber. Repetimos porque amar é repetir sem cansaço. E o que herdei dela — mesmo em silêncio — foi o hábito de cuidar. De servir com ternura. De limpar o mundo ao redor. De fazer o dia parecer mais leve, mais simples, mais azul.
E o pano de prato? Ah, ele não ficou guardado. Ficou vivo. Durante muitos anos, minha mãe o usou. Não como objeto de enfeite, mas como um altar do cotidiano. Sempre à mão para cobrir o que é bom, proteger o que é nosso. E toda vez que eu via aquele pano estendido sobre um bolo recém-saído do forno, eu via também minha avó ali — na varanda, entre hortênsias, sorrindo com os olhos.
Se um dia eu me lembrar de apagar a luz ao sair de um cômodo, não será por economia. Será por lembrança. Por reverência. Porque ela ainda está aqui. Nos gestos que repetimos. Na mesa posta com cuidado. Na doçura de uma uva recém-colhida. No azul improvável das hortênsias.
Abençoada seja, minha avó. O que você deixou em mim não se apaga. É luz que permanece — mesmo quando apagada.
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