Quando o presente atrasa...
Na época do lançamento do primeiro CD da Ivete Sangalo — um sucesso, diga-se — o ano já parecia estar no fim.
Era aquele período em que o ar tem gosto de encerramento, e a escola se enche de ideias como amigo secreto.
Foi uma professora quem sugeriu.
No sorteio, acabei tirando ela mesma: uma mulher branca, com o cabelo cheio de luzes bem ao estilo da época, batom rosa-choque sempre impecável, dessas que falavam com certo orgulho do marido empresário e de uma filha de cinco anos.
Tinha algo nela de brilho e controle — alguém que parecia sempre esperar o melhor do mundo. E, talvez, que o mundo esperasse o mesmo dela.
Lembrei, então, de uma cesta que minha mãe tinha ganhado: daquelas cheias de frutas decorativas que enfeitavam as cozinhas dos anos 90 — lembranças de um tempo em que o toque artesanal ainda tinha lugar de honra na cozinha americana, assim como o pinguim em cima da geladeira.
Mas aquela cesta não era qualquer uma. As frutas pareciam feitas de cera, quase reais, com aquele brilho artificial que encantava justamente por não fingir perfeição, assim como o detalhe da casca do Kiwi, era uma verdadeira arte.
A cestinha era mesmo de palha trançada, feita à mão. Era mais do que um objeto decorativo. Era um aceno de tempo, de cuidado, de beleza miúda.
Achei que uma versão pequena disso seria perfeita para ela. Original, decorativa, surpreendente.
Pedi à minha mãe que encomendasse uma miniatura com a mesma artesã.
Eu queria entregar um presente que dissesse: “pensei em você, espero que goste”. Afinal, era uma responsabilidade gigantesca — dar algo para a própria professora que idealizou a brincadeira.
Ela estava no centro da roda. E, ali, tudo o que era feito ou dito, pesava um pouco mais.
Os dias passaram naquela lentidão apressada de dezembro. Tarde demais para desistir, cedo demais para imaginar o que poderia dar errado.
E mesmo eu avisando que o presente precisava estar pronto para a véspera, a artesã teve imprevistos.
Vida que é feita assim mesmo: entre o combinado e o possível.
Chegou o dia. Fui só com a cara, a coragem e uma explicação.
Ganhei o CD da Ivete Sangalo da minha amiga secreta — e eu amei.
Tinha 16 anos, foi o máximo, uma alegria, Ivete Empoderada.
Mas, na minha vez de revelar quem eu tinha tirado, veio o desafio.
Em frente à turma toda, contei que o presente ainda não estava pronto, mas que seria entregue na sala dos professores no dia seguinte.
Já era difícil me justificar ali, de mãos vazias.
Mas pior foi ver o rosto da professora.
Ela ficou tão, mas tão, mas tão profundamente decepcionada que não conseguiu esconder.
O corpo dela amoleceu num suspiro abafado. O sorriso habitual sumiu num segundo.
Era como se um balão de expectativa tivesse estourado no meio da sala.
Na época, ela devia ter uns trinta anos.
E sim, eu poderia ter improvisado. Comprado um sabonete embalado, uma caneca, uma agenda com capa florida.
Mas eu acreditava que aquele presente tinha um valor especial.
Era bonito, sim, mas sobretudo era pensado.
Era honesto. Era intencional.
No dia seguinte, a cestinha foi entregue.
A artesã, que a conhecia, explicou o atraso.
E a professora, então, compreendeu o gesto.
Disse que o enfeite estava agora na cozinha dela.
Mas o estrago — ou o mal-entendido — já havia acontecido.
Fiquei com o ônus da cena. O silêncio desconfortável. A marca de quem “não trouxe presente” na hora combinada.
Eu e a inquietação de perceber a outra pessoa, o alto astral dela, quase que virou uma aura cor cinza de cigarro, foi brutal e até imaturo.
Hoje, olhando de longe, penso:
Pode ser que ela tenha se sentido exposta por não ter um embrulho para abrir.
Pode ser que ela fosse mesmo o tipo de pessoa que investe grandes expectativas nessas pequenas trocas — esperando ali um afeto concentrado, uma confirmação de pertencimento.
E de certa forma, ela teve uma experiência marcante.
Só que foi por outro ângulo. O presente veio, mas depois.
E aí, fica a pergunta:
Que momento foi aquele?
Talvez tenha sido, para ela, a chance de se desapegar do controle.
De aprender a confiar.
De acreditar que quando alguém diz “vai chegar amanhã”, o mais elegante é acreditar — porque não se perde nada com isso.
Talvez tenha sido, para mim, o início de uma sabedoria silenciosa:
nem tudo que é feito na hora vale mais que aquilo que é feito com intenção.
Que às vezes, o “menos” carrega o mais: mais cuidado, mais verdade, mais tempo dentro dele.
Talvez o universo tenha usado essa pequena história para sussurrar algo maior:
A boa intenção no simples nunca custa caro.
Confiar na palavra do outro é uma gentileza que dignifica quem confia.
E improvisar nem sempre é o melhor — às vezes, o melhor é esperar.
Porque, se eu tivesse corrido atrás de qualquer lembrança para preencher a falta, teria entregue só um objeto.
Mas entregando a cestinha no dia seguinte, entreguei também a minha palavra.
Talvez o tempo tenha feito o que eu não pude fazer naquele instante: sustentar o gesto até que ele florescesse.
Ser ou não ser? Fazer ou não fazer? Entregar o que der, ou manter a promessa?
Fica a reflexão.
Às vezes, confiar é o presente.
E ser compreendido... é o verdadeiro milagre.
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