Você disse que não sabe se não…
Mas também não tem certeza que sim.
Era ouvindo essa dúvida melódica de Djavan que eu atravessava a ponte Rio-Niterói. Cada vez parecia a primeira, com os olhos lavados de maresia e um coração que se abria inteiro diante da cidade que se aproximava como uma promessa. O carro seguia, e eu sentia: tem algo místico entre essas duas margens. Uma espécie de linha tênue entre o que se vive e o que se imagina — como as novelas de Manoel Carlos que embalavam minhas tardes de menina.
Eram tantas Helenas que um dia comecei a achar que era uma delas. A Helena que olhava o avião descendo no Santos Dumont com o mesmo encanto de quem acredita em finais felizes. A Helena que passava pelo centro de Niterói, pelas barcas, pelo shopping, com o peito cheio de pequenos enredos. Que atravessava de catamarã com a alma esvoaçante. Que cantava Cassia Eller em silêncio no bairro das Laranjeiras:
"Aperto o seu andar, não vejo a hora de te encontrar..."
Tudo era poesia. Eu ia do Catete como quem faz turismo na própria cidade. Museu da República, sol da manhã, escadas rolantes ainda novidade — sim, até isso encantava. Tinha 22 anos e a vida era um roteiro inédito. Nessa fase, eu visitava clientes. Sentia suas casas, suas energias, seus labirintos.
Uma delas era uma senhora de 60 e poucos anos, de fala mansa e alma cheia de histórias que não eram bem dela. A filha, a neta, os amores mal resolvidos, as dores herdadas e repartidas. A casa era ampla, arejada, batida pelo sol das 10h, quase cenográfica. Dava até pra ouvir a trilha sonora entrando pela janela.
Ela gostava de conversar. E eu, sem saber direito como sair, ficava. Numa das visitas, cheguei às 11h. Quando percebi, já passava das 15h. Entre palavras e silêncios, fui ficando. E a fome chegou. Discreta, mas firme.
Minha mãe sempre disse: “não se pede comida na casa dos outros”. Isso era educação, quase religião. Até hoje, geladeira, então, nem pensar. Era e é como gaveta de calcinhas: espaço íntimo, inviolável.
E foi então que a neta acordou. Cabelos pretos, longos até a cintura. Talvez tivesse pouca idade além da minha. Eu trabalhando e ela acordando. Preparou um sanduíche, um copo de suco, sentou no canto alemão da mesa — hoje sei que era por falta de espaço, mas na época ainda coloria os cômodos com as tintas das novelas. Ela comeu ali, devagar, enquanto eu fingia não olhar. Fingir, sim. Porque a fome tem olhos, e os meus quase suplicavam.
Mas eu segui firme, como quem respeita a própria fome para não invadir o espaço do outro. Consegui sair dali com a alma drenada, um copo d’água e muitas horas doadas. Ela me falou sobre o Tai Chi, que só anos depois fui entender.
Peguei o metrô no Catete. E ali, na escada, algo doeu. Eu estava me dedicando à sorte daquela senhora. Mas e a minha? A que horas a sorte voltaria os olhos pra mim?
Me senti pequena. Esvaída. Ego ferido, talvez. Porque às vezes é isso: a gente se entrega tanto à dor do outro que esquece da própria vida. E, naquele dia, fui Helena demais. Esqueci de mim.
Hoje eu entendo. Eu era canal. Um fio condutor. Estava ali não para resolver, mas para traduzir — mesmo sem saber. E foi ali que entendi a diferença entre clara e gema. Entre o que se doa e o que se sacrifica.
É isso que ensino hoje às minhas alunas que trabalham com oráculos. Que ajudar não é se anular. Que missão não é martírio. E que a sorte do outro nunca poderá ser trocada pela sua. Cada alma tem sua própria saga.
E mesmo com toda essa entrega, ainda me lembro da música, da barca, da ponte. De Djavan, de Cassia Eller, das novelas e dos pequenos silêncios. Tudo ainda vive em mim. Porque, no fim, essa é minha forma de existir: entalhar vida com palavras, maresia e memória.
A bendita boa sorte...
Naquele dia, eu achei que ela não era minha. Achei que tinha deixado a sorte inteira na casa daquela senhora, como se fosse possível doar fortuna com presença e ficar vazia de si mesma.
Mas hoje, com o tempo atravessado no peito como se atravessa a ponte Rio-Niterói — sentindo cada metro da travessia — eu vejo com mais ternura:
o que me faltava, sobrava pra elas.
E talvez o que me sobrava — essa esperança meio boba, esse olhar de novela, esse encantamento por escada rolante e luz de manhã em cortina leve — faltasse nelas.
E tá tudo bem.
Cada realidade é uma composição própria, com acordes únicos e desafinos que fazem sentido só no compasso de quem vive. A beleza é uma assinatura do instante. Às vezes, escondida no que parecia dor. Outras, gritando no riso de quem ainda acredita.
Porque toda vida carrega sua beleza — mesmo aquela que parece cansada. É como o mar em dia de céu azul brigadeiro.
É como aquele vento que bagunça os cabelos, que arrebenta o coque, desmancha o penteado, mas renova o rosto e desperta a nuca.
É como a maresia que gruda na pele da gente, e mesmo sem ver, a gente sabe que está lá.
E que sorte a minha — meu Deus, que sorte! — poder ter experienciado o que antes parecia surreal, visto só pela tela da televisão.
A cidade, a ponte, as barcas, o sol, as falas doces, as músicas... Tudo aquilo era vida me atravessando. Era eu, vivendo meu papel de Helena anônima, numa novela que ninguém escreve — mas que o tempo, esse roteirista sem descanso, vai costurando com fios invisíveis.
Hoje eu olho pra essa história como quem olha uma fotografia antiga: com carinho, com saudade, com um sorriso quase involuntário.
E penso: a sorte tem muitas formas. Às vezes, ela chega em forma de um sanduíche que não é seu.
Às vezes, vem no silêncio da escada rolante, ou no abraço que não foi dado, mas foi sentido.
E o melhor da sorte — é quando ela nos ensina a olhar para o que se tem. Porque no fim, talvez ela nunca tenha faltado. Só estava quieta, esperando ser notada.
E, pensando bem, talvez minha inquietação nem fosse sobre sorte.
Talvez fosse sobre saudade.
De estar longe dos meus — dos de sangue, dos de afeto, dos de colo.
Porque sim, eu também queria um colo. E quem é que não precisa?
No fundo, aquela vontade de um sanduíche, de um suco, não era sobre comida. Era sobre presença.
Era sobre o silêncio que fica quando a gente sente falta de ser olhada com amor.
Afinal, naquela casa, por mais caos e dramas que houvesse, elas se tinham. A avó, a filha, a neta. Trançadas em afetos tortos, mas presentes.
E eu ali, no meio, como um corpo estranho com alma sensível — tentando iluminar um cômodo que não era meu, mas que por instantes me abrigava.
Ninguém me via direito.
Mas também… um fio condutor não precisa de holofote. Ele apenas liga. Faz passar. Conecta.
E nesse papel invisível, fui sendo. E sendo, cumpri.
Talvez, naquele dia, o que eu tivesse mesmo era carência de aconchego — e não de sanduíches.
Mas isso a gente só entende depois.
Depois que o tempo assenta.
Depois que a alma para de latejar.
Depois que a gente percebe que não é errado querer colo, mesmo sendo forte. Mesmo sendo canal.
E aí a beleza aparece.
Porque toda carência, quando aceita, se transforma em poesia.
E toda ausência, quando compreendida, se converte em presença de um novo tipo: mais madura, mais serena, mais cheia de si.
Hoje, eu entendo.
Não me faltava sorte. Me faltava chão macio, aquele da infância, aquele que chamava de lar.
E tudo bem.
Porque até o desconforto pode ser um presente, quando ele nos empurra de volta pra dentro.
E lá, bem dentro, mora o verdadeiro colo: aquele que a gente aprende a dar pra si mesma.
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