Mil e um momentos perdidos na memória...
Morávamos numa meia água generosa, ampla, de alvenaria, com paredes recém-pintadas num branco que parecia guardar silêncio. Era chão de cerâmica reluzente — um luxo para uma época que vinha do encerado, do escovão, da enceradeira barulhenta que, graças aos céus, minha mãe já podia aposentar. A cozinha, presente do meu pai no aniversário de casamento, era toda embutida, planejada com esmero, como só se via nas casas das revistas. E o armário... ah, aquele armário entalhado na madeira, com detalhes curvos como as modas dos anos 80 — era nosso orgulho silencioso, uma espécie de símbolo do que era possível conquistar. Para nossa realidade, era um ambiente que brilhava discreto no olhar satisfeito da minha mãe.
Eu tinha nove para dez anos. Tempo em que as percepções ainda vinham cruas, mas intensas. O mundo se apresentava cheio de cheiros, sons e texturas. E uma das minhas sensações preferidas era a varanda da nossa casa. Tínhamos quatro cadeiras de vime, bem espaçosas, alinhadas em torno de uma mesinha de centro que sustentava um vaso grande de violetas. Elas não estavam ali por acaso. Eram cultivadas com cuidado e, naquela época, era comum trocar mudinhas entre vizinhas, como quem compartilha segredos ou receitas antigas. Junto com as flores, vinham também os cadernos — organizados, bordados de escrita caprichada e temperos familiares.
De manhã cedo, a vizinha da frente — sempre com energia de quem se deixava levar pela vida — vinha com seu café preto forte, recém-passado, para sentar na nossa varanda. Era um ritual. O pãozinho fresco já a esperava, porque minha mãe, sem dizer nada, sabia esperar as visitas queridas. O rádio dela, sempre ligado bem cedo, atravessava a rua com sua música ou a voz do locutor — que, para mim, era um mistério. Quem seria ele? Alto? Baixo? Tinha olhos tristes? Inventava mil versões do rosto daquela voz, como quem brinca com sombras.
Ela era divertida, meio espírito livre — dessas mulheres com alma dos anos 70, que não tentam controlar a vida, apenas vivem. Tinha um filho um ano mais novo que eu, e nossa amizade de quintal era feita de sol, terra, barulho e figurinhas.
Colecionávamos figurinhas do chiclete Ping Pong. Eu não ligava muito para o chiclete em si — aquela goma doce que estalava na boca e, depois de poucos minutos, ficava dura e sem gosto. Mas o que vinha com ele… ah, aquilo sim me fazia vibrar. As figurinhas.
Cada chiclete vinha envolto em um papel cuidadosamente dobrado. Dentro dele, com uma precisão quase mágica — dessas que só uma máquina poderia realizar — estava ela: a figurinha. Dobrada com exatidão, encaixada como um segredo bem guardado, geralmente da novela Pantanal. Não era apenas um brinde. Era um momento. Desembrulhar aquele papel era como abrir uma janela para o inesperado.
Eu não queria mastigar. Queria colecionar.
Quando eu ia bem na escola, minha mãe me presenteava com uma caixinha nova de chicletes. Era uma forma silenciosa de afeto, um ritual entre nós duas. Nada de brinquedos caros, só aquela caixa — um baú de pequenos tesouros. Cada figurinha nova era uma emoção difícil de explicar. E mesmo quando vinham repetidas, eu não me frustrava. Sabia que poderiam ser trocadas. Trocadas com o menino da vizinha, por exemplo.
Ele sabia quando chegavam figurinhas novas. E vinha. Pegava minhas repetidas — e às vezes até as inéditas — dizendo que precisava delas para jogar bafo com os meninos da escola. Eu deixava. Nunca disse que não, mesmo quando queria. Talvez porque, no fundo, eu soubesse que o pai dele nunca estava. Sempre sumido. E como não havia caminhão, nem outro ofício que explicasse essa ausência longa, eu me perguntava: “Aonde ia esse pai?”
Não havia resposta. Havia só o silêncio — e os olhos dele, tão atentos às figurinhas quanto os meus. E havia também aquela sensação de que, por menor que fosse, um pedaço de papel ilustrado podia construir uma tarde, firmar um laço, acalmar uma espera.
Eu, com meus nove para dez anos, vivia essa delicadeza como quem coleciona pequenas alegrias. E mesmo que o tempo passasse, mesmo que o álbum da Pantanal se perdesse em alguma mudança, ainda hoje, ao lembrar, é como se eu voltasse a desenrolar aquele papel fino com cuidado, esperando, em silêncio, que ali estivesse a figurinha que faltava.
Um dia, a casa dela cheirava a comida boa. Achei que vinha um banquete — como sempre, cheiro de virado de feijão, aquele tipo de farofa úmida, bem temperada, que ela fazia como ninguém. Mas naquele dia havia só arroz na panela. Branco. Silencioso. Ela estava esperando. Ele viria.
Ela se apaixonou por um homem. E só depois, com o bebê já nos braços, descobriu que ele era casado. Era sozinha naquela cidade. Tão sozinha que parecia se acostumar com a ausência dele. Ele passava quando tinha negócios por ali. Mandava o capataz levá-la ao mercado e, com orgulho, ela enchia mais de cinco carrinhos — mas nunca dava até a próxima vinda. E entre uma vinda e outra, ela vivia. Assistia às novelas mexicanas no SBT, ria alto, chorava alto, e esperava. Brigava e fazia supermercado. Era isso.
Ela vivia um dia de cada vez. Como quem não espera que a realidade mude, mas também não se assusta com ela.
A nostalgia, eu entendo agora, é esse lugar seguro onde tudo parece caber. Onde até a falta vira afeto. E onde as coisas, mesmo as tristes, parecem banhadas por uma luz morna. Essa luz que faz da infância uma terra estrangeira — que a gente visita como turista da própria história.
Era estranho perceber, mesmo sem entender direito, que aquela mulher — tão viva, tão colorida como suas violetas trocadas — vivia numa espécie de espera. Esperava por ele, pelo rádio, por uma notícia, por um gesto. Mas não era uma espera triste, era uma espera distraída. Como quem sabe que a vida vem e vai, e que nem tudo é possível entender com palavras. Hoje, deduzo que ela já tinha seus quarenta e poucos.
Enquanto isso, os dias iam passando. As samambaias na nossa varanda balançavam com o vento da tarde, e aquele som de folhas dançando no ar misturava-se com o tilintar das xícaras de café, o barulho do rádio da vizinha, e o ranger leve das cadeiras de vime quando alguém se levantava para ver “o que era aquilo lá fora”.
Eu vivia entre essas coisas pequenas, mas vastas: o barulho da chaleira, o cheiro de pão fresco, a risada da minha mãe conversando com ela, as vozes das novelas no fundo da casa da frente. E ali, sem saber, eu ia sendo formada por tudo isso. Aprendendo que amor pode ser ausência, que presença pode ser barulho, e que o silêncio às vezes ensina mais do que uma conversa inteira.
Às vezes, quando ela se levantava depois do café, deixava o prato com farelos de pão sobre a mesinha e dizia: “A gente se vê mais tarde”. E eu pensava: será que ela vai mesmo? Ou será que isso é só uma forma bonita de se despedir? Porque às vezes as pessoas dizem coisas assim, que soam como promessas, mas são só jeitos de não dizer adeus.
Minha mãe, sempre atenta, já sabia o que fazer. Sem alarde, sem palavras desnecessárias, ela preparava uma sacola simples, com um pouco de pão fresco, talvez um pedaço de bolo ou algumas frutas. Era para o filho dela, que muitas vezes ainda dormia na hora do café. Minha mãe era assim: generosa, mas discreta. Nunca fazia alarde de suas bondades. Apenas agia, como se fosse a coisa mais natural do mundo.
Eu observava tudo em silêncio, aprendendo que o cuidado verdadeiro não precisa de testemunhas. Que a generosidade mais profunda é aquela que se dá sem esperar retorno, sem buscar reconhecimento. Minha mãe se importava com as pessoas de um jeito que era só dela — um jeito calmo, constante, quase invisível, mas profundamente presente.
E assim, entre farelos de pão e sacolas discretas, eu ia entendendo que o amor se mostra nos pequenos gestos. Que às vezes, um simples “a gente se vê mais tarde” carrega dentro de si um mundo de significados, de esperas, de promessas silenciosas. E que minha mãe, com sua quietude generosa, era a guardiã dessas pequenas grandes coisas que fazem a vida valer a pena.
Naquele tempo, não havia nome pra esse tipo de sensação. Não se dizia “melancolia”, não se falava de “existencialismo”, muito menos de “solidão feminina nos subúrbios dos anos 80”. Era só vida. A vida como ela era, em sua versão mais branda e crua ao mesmo tempo.
E hoje, quando o cheiro do café me alcança antes mesmo de eu ver a xícara, ou quando escuto uma música antiga no rádio, parece que aquela casa ainda está aqui, sussurrando nas paredes da minha lembrança. A meia água branca, as samambaias verdes, as cadeiras de vime com suas tramas antigas. E as vozes... as vozes que enchiam o ar com suas histórias nunca ditas por inteiro.
A nostalgia não é um lugar. É um intervalo. Um entre. Um espaço entre o que foi e o que ainda nos toca. E, às vezes, quando me pego parada, olhando qualquer coisa que o vento move, penso que estou de volta ali — com nove anos, quase dez — vendo minha mãe passar lustra-móveis nas cadeiras, ouvindo o rádio da vizinha, e me perguntando que rosto teria aquela voz.
É assim que a infância nos visita: como quem nunca foi embora de verdade.
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