Quando uma dor atravessa a varanda e se transforma em chamado — lembranças de um encontro que revelou meu lugar no mundo.
Certo dia, naquele tipo de horário de cidade pequena — o finalzinho da manhã em que o sol já avisa que é quase hora do almoço —, eu devia ter uns treze anos e estava ajudando minha mãe na cozinha.
Em casas como a nossa, o almoço não era regra, era ritual. Meu pai era pontualíssimo, e tudo precisava estar impecável — não por imposição, mas por zelo, por aquele carinho que se revela no cuidado das pequenas coisas.
Foi então que alguém bateu palmas no portão.
Minha mãe, que não gostava muito de visitas inesperadas — uma pisciana com ascendente em áries, se isso já não diz tudo — me pediu que fosse ver quem era.
Lá fora, uma mulher magra, com os olhos vermelhos de tanto chorar.
O que mais me chamou atenção foi o lenço: um tecido grande, com estampa colorida em tons de azul, enrolado no cabelo preso em um rabo de cavalo médio.
Não era florido, o que já era algo.
Disse à minha mãe que nunca tinha visto aquela mulher antes.
Ela não parecia estar perdida. Não parecia engano.
Minha mãe, então, foi até o portão.
E, diante das lágrimas da desconhecida, resolveu deixá-la entrar.
Na varanda — sempre limpa como um templo, com suas plantas cuidadas e o jogo de cadeiras de madeira em torno da mesinha com vaso de antúrio no centro — a mulher foi se aproximando devagar.
Minha mãe, desconcertada, ofereceu um copo d’água.
Enquanto fui buscar, a mulher se sentou e começou a falar, entre um soluço e outro:
Tinha acabado de descobrir que a vizinha do lado esquerdo era amante do marido dela.
Era uma confissão quase íntima, jogada sobre a varanda como um lençol ao vento.
Nunca havíamos visto essa vizinha. O muro era alto e, pelas luzes da casa acesas sempre à noite, ela parecia só aparecer depois do anoitecer.
Minha mãe respondeu que não conhecia ninguém dali.
A mulher disse, então, que queria morrer. Que não via sentido em mais nada.
Estava casada havia mais de uma década, lutando para engravidar.
E agora, traída.
Apunhalada no que restava do que havia construído.
Eu me sentei. Por puro ímpeto.
Aos treze anos, há perguntas que escapam pela boca como flechas — e talvez sejam, sem querer, exatamente as que precisam ser feitas.
Minha mãe tentou ser prática. Disse que era hora do almoço, que meu pai logo chegaria, e que não tinha muito como ajudar.
Mas pediu calma. “Não faça nada no calor da emoção”, ela disse.
A mulher balançou a cabeça, compreendendo.
Disse que não queria atrapalhar.
Mas, naquele momento, eu já estava envolvida.
Fiquei observando: as unhas sem esmalte, o cabelo sem viço, o lenço que parecia maior do que ela, como se quisesse escondê-la do mundo.
O tempo de tentar engravidar a havia consumido.
Ela não parecia doente, mas estava opaca — como uma fruta que ainda está inteira, mas já perdeu o brilho da casca.
Perguntei há quanto tempo ela sabia da traição.
Meses, disse.
E há quanto tempo ele a traía?
“Talvez anos”, ela respondeu.
Então por que ainda estava com ele?
“Porque eu o amo.”
Respostas simples, mas que doíam em quem as dizia.
Então fui direto:
— Seu marido gosta de passear com a senhora?
Ela sorriu com tristeza.
Disse que, quando ele via Fórmula 1, ela limpava.
Quando ele assistia futebol, ela limpava.
Quando comiam juntos, era na casa da mãe dele.
E assim seguiu, contando a rotina de um casamento onde não havia mais encontro.
Só coexistência.
— A senhora tinha intenção de bater na porta da outra mulher? — perguntei.
— Se eu visse o carro dele ali, sim.
— A senhora se preparou pra isso?
— Preparei.
E foi então que eu, com meus treze anos, soltei:
— Mas a senhora nem tá de batom.
Ela me olhou surpresa, como se eu tivesse dito algo que ninguém mais teria coragem.
Ou como se, de repente, tivesse enxergado a si mesma.
Ali, sentada, descuidada, no auge da dor... ela percebeu: talvez tivesse se esquecido dela mesma.
Talvez tivesse deixado de se enxergar.
Não por culpa, mas por excesso de entrega.
Disse a ela que o marido não havia ido embora.
E que, se depois de tantos anos e sem filhos ele ainda estava ali, era porque talvez — só talvez — ainda a amasse.
E que ela podia, quem sabe, tentar reencontrar o que haviam perdido.
Começando por si.
Semanas depois, ela voltou.
Dessa vez, minha mãe que me contou.
Eu não estava em casa.
Ela apareceu com um presente pra mim: um lenço.
Nunca usei. Mas nunca me desfiz.
É estampado, com múltiplos pontinhos brilhantes.
Tenho quase certeza de que, se procurar bem, ainda está guardado em alguma caixa.
Minha mãe disse que ela estava arrumada.
Maquiada.
Sorridente.
Disse que estava mudando a vida deles.
Como, exatamente, não sei.
Mas gosto de imaginar.
Gosto de acreditar que ela saiu daquela varanda levando um pouco de mim.
E deixou, com aquele lenço, um pouco dela também.
Anos depois, entendi:
Aquele foi meu primeiro atendimento.
Meu primeiro momento de escuta verdadeira.
Meu primeiro “honorário” — um gesto, um lenço, um brilho nos olhos de alguém que havia reencontrado a si mesma.
Hoje, reflito com doçura sobre tudo isso.
Perder o vínculo com o companheiro porque se perdeu no caminho da gestação que não chega…
é quase tentar apressar o tempo de Deus.
Talvez o marido dela também estivesse ferido, inseguro.
Naquela época, um casal sem filhos depois de tantos anos era quase um enigma incômodo para os vizinhos e para a própria autoestima.
Ela se recolheu.
Ele, quem sabe, escapou.
E ali, entre um gole d’água e uma frase de uma adolescente, os dois — sem saber — começaram a voltar.
Um para o outro.
Hoje sei que há coisas que a medicina não cura.
Que o amor não sobrevive de tarefa, e que a ausência de si é uma das formas mais tristes de abandono.
E que ouvir — só ouvir, com atenção e verdade — pode ser uma forma profunda de cuidado.
Ser ou não ser?
Ficar ou ir?
Bater na porta da outra… ou passar batom?
Há escolhas que parecem pequenas.
Mas são essas que decidem tudo.
Porque às vezes, o que salva uma vida inteira…
é ser ouvida por alguém que só queria ajudar a mãe com o almoço.
E naquele instante — sem que eu soubesse, sem que ela pedisse —
uma epifania atravessou a varanda como um alarde da alma.
A dor dela me entregou um segredo:
ser canal, ser meio, ser abrigo para o outro é, por si só, uma dádiva.
E naquele lenço, com seus pontinhos brilhantes, ela deixou em mim mais do que um presente:
contribuiu para um chamado.
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