Uma tarde no Maracanã, uma senhora, um gesto — e o reencontro com algo esquecido, como os vaga-lumes nas noites da infância.
De metrô, cheguei no bairro do Maracanã. Era começo de tarde, e o ar tinha aquele silêncio abafado que só os dias muito quentes conhecem. Segui pelas calçadas meio tortas, prestando atenção nos nomes das ruas, anotados num papel dobrado com cuidado. Essas visitas surgiam por indicação — mulheres que confiavam em mim antes mesmo de me conhecer, e que passavam meu nome como quem entrega um segredo bom.
Eu que, um ano antes, só sabia da existência de escada rolante pelas novelas, agora estava ali, sem pressa, quase sem acreditar. Imagine ver, assim de perto, o Maracanã? Na televisão já parecia imenso, mas diante dele, mesmo por fora, era colossal. Quase impensável. Meu passo desacelerou como quem respeita um monumento. Senti aquele aperto bom no peito — coisa de quem vê algo maior que a própria história e, ainda assim, se sente parte.
A casa da senhora ficava algumas quadras depois. O prédio tinha portão de alumínio, e quem atendia o interfone era ela mesma. Não era como nas novelas, onde o porteiro anuncia com voz grave quem chegou — mas havia ali um charme diferente, mais íntimo. Era o Rio de Janeiro, afinal. E o Rio tem dessas coisas: a beleza mora em todos os cantos, mesmo nos detalhes mais simples. Às vezes, o que parece modesto carrega um calor que falta nos palácios. E como diz a canção — o Rio de Janeiro continua lindo.
A senhora me esperava. Tinha um jeito acolhedor, aquele humor leve que só o povo carioca carrega com naturalidade. Falava comigo como se eu fosse da família, dessas que a gente reencontra depois de anos. E, de certo modo, talvez fosse isso mesmo: reencontro.
O prédio era simples, sem porteiro. Mas para mim, que cresci com as novelas como referência de mundo, aquilo já era um certo tipo de elegância. Tive essa sensação boba, e sorri por dentro.
Pedi para lavar as mãos — por respeito ao que viria. Porque antes de tocar qualquer símbolo, eu sempre achei importante estar limpa, presente. Abri minha frasqueira e retirei, com cuidado, um tecido bordado com fios dourados. Era um presente antigo, daqueles que guardam gesto e memória. Ali, sobre ele, organizaria meu baralho. Um objeto de trabalho, sim — mas também de presença, de silêncio, de escuta. As cartas me acompanhavam há anos. Carregavam histórias. E era isso que eu lia nelas.
Ela queria saber sobre um empréstimo. O dinheiro seria para uma cirurgia plástica. Mas a pergunta era outra. A verdadeira questão tremia nos olhos dela: “Será que ainda posso ser amada se for vista de outro jeito?” Não falava assim, claro. Falava com hesitação, com sorrisos tímidos e justificativas práticas. Mas eu via.
O plano era fazer tudo em segredo. Sem contar ao marido. Sete anos mais novo, ele parecia, a cada dia, mais distante. Ela não queria apenas levantar a pele do rosto. Queria voltar a se sentir inteira. Era um desejo de se reencontrar na própria imagem, de acordar o que adormeceu.
Perguntei, com delicadeza, sobre o pós-operatório. Como pretendia passar por aquilo sozinha? O corpo exige cuidado, e o cuidado pede presença. Silenciamos. Havia ali um vazio mais denso que o ar.
Falamos do tempo — não o dos relógios, mas o tempo que escapa: criando filhos, trabalhando, esquecendo de si. Ela falou da juventude que passou sem ter sido vivida de verdade. Do quanto agora doía perceber que só agora era sua vez — e já era tarde.
Perguntei, num tom baixo, quase como quem se pergunta a si mesma:
— O que você amava fazer e se esqueceu?
Ela respondeu com um sorriso leve, quase com vergonha da lembrança:
— Dançar.
Contou que dançavam muito, ela e o marido. Que riam, que se perdiam na música. E agora, nem lembravam qual era a última canção.
Sugeri que começasse por aí. Pela dança. Por um passo que fosse. Antes de mudar o que se vê no espelho, é preciso tocar o que ficou quieto por dentro. Porque beleza mesmo é quando a vida volta a se mover. Me chamou outras vezes. Fomos tecendo aquele laço que não precisa de nome.
Em uma dessas visitas, contei a ela — com um certo cuidado, sem invadir histórias — sobre a cliente que me deu o tecido dourado. Trabalhava com fios russos, sustentando a pele de outras mulheres. Eu não costumava cruzar caminhos assim. Mas ali, me pareceu certo. Era como se uma pudesse devolver à outra uma parte esquecida do espelho.
Meses depois, recebi uma mensagem. Era Réveillon de 2004. Ela me desejava um ano bonito, cheio de clarezas. E disse que, de algum jeito, eu havia acendido uma lamparina no caminho dela. Li aquilo com os olhos marejando. Lamparina. A palavra caiu macia no peito, e imediatamente me levou de volta à infância.
Naquele tempo, quando a energia faltava, meu pai não acendia o liquinho logo de primeira. Ele deixava a casa mergulhada no escuro por um tempo. A gente ficava quieto, meio imóvel, como se esperando algo que não se nomeia. E então, aos poucos, os olhos iam se acostumando à escuridão. Foi assim que aprendi a ver as estrelas direito. E a notar os vaga-lumes no quintal — piscando devagar, como se conversassem entre si.
Só depois disso tudo é que ele riscava o fósforo com calma, encaixava na lateral da lamparina e deixava o gás acender. A luz vinha pequena no início, depois ia crescendo, amarela e serena. Nunca era um susto. Era um gesto. E por isso, talvez, iluminasse mais do que só o espaço ao redor.
Naquela noite de Réveillon, lendo a mensagem dela, entendi que às vezes é isso que a gente faz na vida do outro: não explode uma luz, não traz um sol — apenas acende uma pequena lamparina. E permite, antes disso, que a escuridão mostre também sua beleza. Porque só no escuro profundo é que algumas luzes delicadas se deixam ver.
E você?
O que é que ama fazer...
e deixou apagado no escuro
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