A Frequência do Sigilo
Era o final dos anos 80, e a televisão ainda parecia um mistério cheio de possibilidades. Aquela tela meio fosca, com imagens dançando entre chuviscos, era quase um portal mágico. O controle remoto, pesado e estranho, parecia mais um brinquedo de outro planeta do que um acessório comum de casa. E eu, com uns oito anos e uma curiosidade sem fim, adorava mexer naqueles botões como se estivesse pilotando uma nave intergaláctica.
Não tinha muita coisa pra ver na TV naquela época, ainda mais com os sinais ruins. Entre a TVS (que depois virou SBT) e a Globo, o que mais aparecia era aquele monte de pontinhos pretos e brancos — o famoso "chuvisco" — e um som de estática que dava até arrepio. Mas havia algo encantador naquela bagunça toda. Era como se cada chiado escondesse um segredo.
Foi numa dessas tardes, com o céu meio nublado, que aconteceu. Eu estava no chão da sala, mexendo no controle remoto, pulando de canal em canal, quando... algo diferente surgiu. A imagem continuava cheia de interferência, mas o som mudou. O chiado deu lugar a vozes.
Sim, vozes. Claras. Conversando.
Na hora, fiquei paralisada. Não era novela, nem jornal, nem desenho. Eram pessoas de verdade conversando. E eu, do meu cantinho, ouvindo tudo pela televisão. Meus olhos arregalaram.
A primeira voz era de um homem, falando ao telefone. Aparentemente, tinha acabado de ligar para a mãe — eu ouvi só um trechinho dessa parte. Depois, veio outra ligação. Dessa vez, uma mulher atendeu. A conversa era cheia de carinho. Os dois falavam com saudade, com aquele jeitinho gostoso de quem tem intimidade. Eu não entendia tudo, mas sentia o clima da conversa. Era bonito de ouvir.
E aí veio a terceira ligação. Foi quase imediata, como se ele já tivesse deixado tudo encomendado com a telefonista do PS — o posto telefônico, onde a gente ia pra fazer chamadas interurbanas. Essa ligação era diferente. O tom dele mudou. Continuava sendo o mesmo homem, mas parecia... mais leve. Até brincalhão. E a mulher que atendeu também falava sorrindo, com uma voz que parecia segurar um segredo engraçado.
Foi nessa ligação que ouvi, com toda a clareza do mundo, uma palavra que me deixou intrigadíssima:
"manteúda".
Eu nunca tinha escutado aquilo. Era tão estranho, tão diferente. Manteúda? O que era isso? Um nome? Um lugar? Um tipo de comida? Sei lá! Mas, como criança que presta atenção nas coisas mais bobas (e se diverte com isso), fiquei fascinada. Comecei a repetir baixinho, pra mim mesma:
— Man-teeeee-ú-da... mante-uuuuuuuuuu-da...
Fiquei encantada com o som da palavra. Era divertido de dizer, como uma cantiga inventada na hora. E claro, repeti tantas vezes que, por um bom tempo, virou minha brincadeira favorita.
Minha mãe, que estava por perto, me olhou com cara de quem achava aquilo tudo meio estranho. Chegou mais perto e perguntou o que eu estava assistindo. Disse que não era um programa, que eram pessoas conversando “dentro da TV”. Ela parou, escutou um pouco, e franziu a testa.
— "Essas interferências acontecem. Vai ver cruzou alguma linha do PS com o sinal da TV..." — disse, rindo de leve, mas visivelmente surpresa. Ficou ali comigo por alguns minutos, como quem tenta montar um quebra-cabeça invisível.
Na hora, eu não entendi direito o que estava acontecendo. Não fazia ideia de que tipo de conversas eram aquelas, nem que relação havia entre aquelas pessoas. Tudo o que eu sabia era que estava ouvindo algo proibido sem querer, como quem encontra uma passagem secreta atrás do armário da sala.
Anos depois, já adulta, lembrei dessa história com mais clareza. E aí tudo fez um pouco mais de sentido. Provavelmente, aquele homem fez três ligações: uma pra mãe, cheia de afeto; outra pra esposa — ou talvez uma namorada — com quem falava com carinho; e por fim, essa última, mais descontraída, com alguém especial que talvez ele mantivesse em segredo.
Mas naquela época, com oito anos, eu não tinha estrutura pra entender esse tipo de coisa. Pra mim, era só uma sequência de vozes misteriosas, uma palavra nova e engraçada, e a sensação mágica de estar ouvindo algo que vinha de outro mundo — ou pelo menos de outro lugar.
Hoje vejo aquilo como um episódio curioso da minha infância. Um daqueles momentos que a gente não esquece, mesmo que não saiba bem por quê. Me ensinou, de um jeito sutil, que as histórias das pessoas são cheias de camadas — e que nem tudo o que parece secreto está realmente escondido. Às vezes, até uma televisão com sinal ruim pode abrir uma janela para algo que era pra ficar entre quatro paredes.
E eu? Eu só estava lá, brincando com o controle remoto, dizendo baixinho:
— Man-teeeee-ú-da... mante-uuuuuuuuuu-da...
Bobeiras de criança, eu sei. Mas são dessas bobeiras que a memória da gente é feita.
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