Versão 4.0
Eu tinha perto de oito anos quando minha irmã nasceu. Até ali, o mundo girava em torno de mim — e que delícia era isso. Tudo meu, tudo feito pra mim. Lembro da emoção no dia em que o bebê chegou. Aquela sensação entre o encantamento e o susto: como seria a vida agora? Um neném tão pequeno, tão frágil — e eu me perguntava, em segredo: como foi que ele entrou na barriga da minha mãe?
Foi também naquele ano que descobri duas coisas de uma só vez: que o Papai Noel não existia… e, por dedução própria, que coelhos provavelmente também não entregavam chocolate. A vida começava a mostrar suas dobras. Foi um pouco decepcionante.
Quando minha mãe foi para o hospital, quem ficou comigo foi a vizinha, Dona Catarina. Uma mulher generosa, já idosa, com as marcas do sofrimento estampadas no corpo e no silêncio. Foi através dela — e muito tempo depois — que eu entendi o que era um casamento em crise. Mas naquele momento, eu só sabia de uma coisa: o bebê ia nascer. Iam abrir a barriga da minha mãe! E quanto tempo isso levaria? Ela só voltaria no dia seguinte? E dois dias depois, então, já estaria de alta?
Meu pai me levou ao hospital para ver minha mãe e conhecer o bebê. Era uma menina. De bochechinhas rosadas e tão pequenininha que nem chegava ao tamanho do meu bebê da Estrela. Fiz essa análise comparativa, como boa irmã mais velha recém-promovida. Sim, eu agora era a irmã mais velha. Mas não tinha sido uma escolha. Agora tudo seria para o bebê?
Foi ali que nossa família se atualizou. Versão 4.0. E eu entendi que a vida pode mudar de repente. Mudar de forma intensa, cheia de sentimentos que não cabem na boca da gente. Eu já amava aquele neném. Já queria ajudar, cuidar, ficar por perto. Só não sabia ainda como fazer isso.
Sempre fui muito interna. Muito "intra". Tudo acontecia dentro de mim, como um teatro silencioso. Por isso as percepções, os olhares enviesados, as perguntas caladas. Nunca faria esses questionamentos à minha mãe — certas coisas eram de adultos, outras, de crianças. E eu respeitava essa fronteira invisível.
Dona Catarina era a presença materna da minha mãe, já que a dela morava longe. Mais de 2.500 km. E eu sabia, porque já tinha ido até lá: não era perto. Nem simples. Dona Catarina via o marido passar os dias fora de casa. Preferia um sítio — que eu não sei até hoje se era deles ou se ele apenas trabalhava por lá. Quando vinha, trazia comida, mas nunca dinheiro. Ela sustentava a casa lavando roupa na mão para as vizinhas. Todas a ajudavam, em uma espécie de rede silenciosa de solidariedade. A varanda dela era um monumento ao esforço: pilhas e pilhas de roupas, dia e noite. Como uma lavanderia de gente forte, sem máquina, sem descanso.
Ela era sábia. Tivera muitos filhos, conhecia os bebês como quem conhece os ciclos da lua. Mas chorava em silêncio. Ficava vermelha como pimentão, de cansaço e de nervoso. E eu, sempre de orelhas atentas, escutava tudo com aquela curiosidade infantil que nunca dorme. Mas não perguntava. Pegava as informações no ar, como quem colhe fragmentos de conversas sem saber ainda o que significam por completo.
Eu olhava aquele senhor com olhos curiosos de criança e pensava: ele devia estar em casa, ajudando. Afinal, família não é pra ser junto? Mas eu ainda não entendia muito bem os silêncios dos adultos, nem o peso que a vida às vezes coloca sobre os ombros de um só.
Ele passava dias longe, no sítio. Hoje me pergunto se era trabalho, fuga ou simplesmente a forma que encontrou para lidar com as demandas de uma casa cheia, daquelas que cobram mais do que o coração consegue dar. A filha mais velha já tinha 17, a mais nova 9 — algo ele deve ter feito por aquela família, de algum modo. Talvez do jeito que soube, do jeito que pôde.
Naquele tempo, eu ainda não compreendia que amar nem sempre é estar presente da forma ideal, mas às vezes é garantir o que se consegue. Pensava no porquê dele não voltar mais vezes, por que não estar mais perto… mas hoje, olhando com outros olhos, talvez ele também estivesse tentando não se perder de si mesmo, enquanto tentava, como podia, não se perder da família.
Nem todo mundo sabe ficar. E tudo bem — a vida também é feita dos que partem. Mas há laços que resistem. Silenciosos, profundos, que não precisam ser reafirmados todos os dias para existirem. Estão ali, firmes, mesmo quando parecem distantes.
Naquele dia, minha irmã chegou ao mundo — e eu ganhei uma nova missão: jamais ser sozinha.
E que sorte a minha.
Porque mais do que dividir o mesmo sangue, mais do que partilhar a vida com raízes comuns, o que nasceu entre nós foi um elo. Um daqueles que atravessam as estações e as fases da vida. Que se sustenta mesmo no silêncio.
Eu, no meu ali, ganhei alguém. Um novo alguém pra dividir a vida. Pra me lembrar, em dias difíceis, que há sempre um porto onde posso pousar.
Um elo que não exige explicações, nem discursos. Basta um olhar. Um gesto. Um "tô aqui" quase sem voz, mas cheio de presença.
Ter isso… é mais do que sorte. É milagre cotidiano.
E eu tive.
Tenho.
Que sorte a minha, não?
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