Quando eu tinha uns oito, talvez nove anos, era comum que faltasse luz em casa. Em toda a cidade, na verdade. Bastava uma ventania ou uma daquelas chuvas fortes de verão e tudo mergulhava num breu repentino, como se alguém desligasse o mundo do interruptor.
Naquela época, ainda não existiam tablets, celulares, nem nada dessas coisas que hoje parecem ter nascido junto com a infância. E talvez por isso, brincar com vela era uma espécie de privilégio. Minha mãe deixava. Como quem entende que uma pequena distração pode salvar um dia difícil. Como as mães de hoje, que liberam meia hora de desenho para tomar um café em paz.
Eu usava um palito de dente para empurrar e puxar a cera derretida, enquanto observava a chama tremular. Azul na base, amarela mais em cima. Aquela luz fraca e insistente parecia ter vida. Às vezes, eu soprava de leve só pra ver a chama se contorcer, mas nunca o suficiente pra apagá-la.
Era um tempo em que as noites escuras ainda tinham vaga-lumes, e os vizinhos se conheciam pelo nome. Um tempo em que perder a luz era quase o mesmo que encontrar silêncio.
Foi numa dessas noites que tudo aconteceu.
Dona Catarina chegou na nossa casa com a voz baixa e a cara abatida. Lembro de ver minha mãe franzir a testa quando ela cochichou algo no seu ouvido. O marido da vizinha da rua de cima tinha morrido num acidente.
Não era exatamente próximo, nem conhecido. Talvez minha mãe nunca tivesse sequer falado com a tal vizinha. Mas naquela época, a morte era como um sino que tocava pra todos ouvirem. Um chamado que não se ignorava.
— O corpo já está na casa — disse Dona Catarina.
Na casa. Na sala.
E naquela época, o velório era assim: acontecia entre as paredes onde a pessoa viveu. O morto voltava para o lugar onde amava, onde comia, onde dormia. Era o último suspiro da presença.
Meu pai achou que conhecia o homem. Disse que era boa pessoa, trabalhadora, jovem ainda. Resolveu que iria até lá. Um gesto simples, como tantos outros que ele fazia, mas que dizia muito sobre o homem que era.
Dona Catarina ia. Minha mãe decidiu ir também.
E eu? Fui junto.
Era a primeira vez que eu via alguém morto. E mesmo antes de chegar perto, já sentia o peso do que não entendia.
A casa estava cheia. Gente por todos os lados. Uns em pé, outros sentados onde podiam. A luz ainda não tinha voltado, e as velas davam à cena um tom amarelado, quase triste. Aquelas chamas pareciam saber o que estava acontecendo.
Do quarto ao lado da cozinha vinha um choro que atravessava os ossos. A mulher do falecido estava lá, cercada por parentes, vizinhos, talvez desconhecidos. Era um som agudo, repetido, desesperado.
Eu fiquei parada, sem coragem de entrar naquele quarto.
Fiquei ali, num canto da sala. E ao meu lado direito… o caixão.
O homem parecia estar dormindo. Mas de um sono diferente. Um que não tinha retorno.
Era careca. Tinha um bigode grisalho e um corte no supercílio. Outro na lateral do queixo. A pele ainda tinha cor, como se o sangue tivesse esquecido de parar. Aquilo só podia ter acontecido há pouco tempo.
Fiquei olhando.
Pensando.
Será que ele sabia que estava ali?
Será que ia respirar debaixo da terra?
Será que sentiria frio?
Ideias desconexas, perguntas que vinham e iam. Nada fazia muito sentido.
Mas havia uma certeza: ele não acordaria mais.
E isso me assustou de um jeito silencioso. Porque ninguém disse nada. Ninguém me explicou. Eu apenas senti.
A mulher saiu do quarto por um instante. Era pequena, magra, com cabelo curto, daqueles práticos. Os olhos vermelhos, o rosto molhado de lágrimas. Não me lembro de filhos. Talvez não tivessem.
Só sei que ali estavam ela, o silêncio, e o corpo dele.
A casa era simples. Sem varanda. Da porta já se caía na sala. Móveis antigos, chão de cimento. O cheiro de vela misturado com café.
A vida deles era aquela.
E agora, ele não estava mais.
Ou talvez estivesse.
Mas de outro jeito, que eu ainda não conhecia.
As pessoas conversavam baixo, algumas em grupos pequenos, até no quintal. A noite seguia, lenta. E então, como se esperasse o momento certo, a luz voltou.
Uma luz fraca, quase uma sombra. A lâmpada piscou duas vezes antes de se firmar. Amarelada, como aquelas de 50 watts que parecem nunca estar inteiramente acesas.
Até hoje gosto de luz branca. Branca de doer. E talvez seja por isso.
Quando a luz se firmou bem sobre o caixão, vi a mulher se aproximar dele. Encostou, chorou ainda mais forte, como se aquele fosse o último toque possível. Um adeus sem palavras, mas com todo o corpo.
Minha mãe, como sempre, entendeu antes de mim.
Me pegou pela mão e disse:
— Vamos.
E fomos com meu pai e dona Catarina. Saímos devagar. Passamos pelo portão sem dizer nada. A rua ainda estava escura. Mas agora havia luz dentro das casas.
Eu não perguntei nada. Não precisava.
E minha mãe, talvez sem saber, me ensinou que às vezes o silêncio é o único jeito de se lembrar de algo sem quebrar.
Risos. E assim se vivia ou se aprendia a viver nos anos 80 e 90.
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