Pular para o conteúdo principal

🕯️Vela, silêncio e a sombra de um adeus

 


Quando eu tinha uns oito, talvez nove anos, era comum que faltasse luz em casa. Em toda a cidade, na verdade. Bastava uma ventania ou uma daquelas chuvas fortes de verão e tudo mergulhava num breu repentino, como se alguém desligasse o mundo do interruptor.

Naquela época, ainda não existiam tablets, celulares, nem nada dessas coisas que hoje parecem ter nascido junto com a infância. E talvez por isso, brincar com vela era uma espécie de privilégio. Minha mãe deixava. Como quem entende que uma pequena distração pode salvar um dia difícil. Como as mães de hoje, que liberam meia hora de desenho para tomar um café em paz.

Eu usava um palito de dente para empurrar e puxar a cera derretida, enquanto observava a chama tremular. Azul na base, amarela mais em cima. Aquela luz fraca e insistente parecia ter vida. Às vezes, eu soprava de leve só pra ver a chama se contorcer, mas nunca o suficiente pra apagá-la.

Era um tempo em que as noites escuras ainda tinham vaga-lumes, e os vizinhos se conheciam pelo nome. Um tempo em que perder a luz era quase o mesmo que encontrar silêncio.


Foi numa dessas noites que tudo aconteceu.

Dona Catarina chegou na nossa casa com a voz baixa e a cara abatida. Lembro de ver minha mãe franzir a testa quando ela cochichou algo no seu ouvido. O marido da vizinha da rua de cima tinha morrido num acidente.

Não era exatamente próximo, nem conhecido. Talvez minha mãe nunca tivesse sequer falado com a tal vizinha. Mas naquela época, a morte era como um sino que tocava pra todos ouvirem. Um chamado que não se ignorava.

— O corpo já está na casa — disse Dona Catarina.

Na casa. Na sala.

E naquela época, o velório era assim: acontecia entre as paredes onde a pessoa viveu. O morto voltava para o lugar onde amava, onde comia, onde dormia. Era o último suspiro da presença.

Meu pai achou que conhecia o homem. Disse que era boa pessoa, trabalhadora, jovem ainda. Resolveu que iria até lá. Um gesto simples, como tantos outros que ele fazia, mas que dizia muito sobre o homem que era.

Dona Catarina ia. Minha mãe decidiu ir também.

E eu? Fui junto.


Era a primeira vez que eu via alguém morto. E mesmo antes de chegar perto, já sentia o peso do que não entendia.

A casa estava cheia. Gente por todos os lados. Uns em pé, outros sentados onde podiam. A luz ainda não tinha voltado, e as velas davam à cena um tom amarelado, quase triste. Aquelas chamas pareciam saber o que estava acontecendo.

Do quarto ao lado da cozinha vinha um choro que atravessava os ossos. A mulher do falecido estava lá, cercada por parentes, vizinhos, talvez desconhecidos. Era um som agudo, repetido, desesperado.

Eu fiquei parada, sem coragem de entrar naquele quarto.

Fiquei ali, num canto da sala. E ao meu lado direito… o caixão.


O homem parecia estar dormindo. Mas de um sono diferente. Um que não tinha retorno.

Era careca. Tinha um bigode grisalho e um corte no supercílio. Outro na lateral do queixo. A pele ainda tinha cor, como se o sangue tivesse esquecido de parar. Aquilo só podia ter acontecido há pouco tempo.

Fiquei olhando.

Pensando.

Será que ele sabia que estava ali?
Será que ia respirar debaixo da terra?
Será que sentiria frio?

Ideias desconexas, perguntas que vinham e iam. Nada fazia muito sentido.

Mas havia uma certeza: ele não acordaria mais.

E isso me assustou de um jeito silencioso. Porque ninguém disse nada. Ninguém me explicou. Eu apenas senti.


A mulher saiu do quarto por um instante. Era pequena, magra, com cabelo curto, daqueles práticos. Os olhos vermelhos, o rosto molhado de lágrimas. Não me lembro de filhos. Talvez não tivessem.

Só sei que ali estavam ela, o silêncio, e o corpo dele.

A casa era simples. Sem varanda. Da porta já se caía na sala. Móveis antigos, chão de cimento. O cheiro de vela misturado com café.

A vida deles era aquela.

E agora, ele não estava mais.

Ou talvez estivesse.

Mas de outro jeito, que eu ainda não conhecia.


As pessoas conversavam baixo, algumas em grupos pequenos, até no quintal. A noite seguia, lenta. E então, como se esperasse o momento certo, a luz voltou.

Uma luz fraca, quase uma sombra. A lâmpada piscou duas vezes antes de se firmar. Amarelada, como aquelas de 50 watts que parecem nunca estar inteiramente acesas.

Até hoje gosto de luz branca. Branca de doer. E talvez seja por isso.

Quando a luz se firmou bem sobre o caixão, vi a mulher se aproximar dele. Encostou, chorou ainda mais forte, como se aquele fosse o último toque possível. Um adeus sem palavras, mas com todo o corpo.

Minha mãe, como sempre, entendeu antes de mim.

Me pegou pela mão e disse:

— Vamos.

E fomos com meu pai e dona Catarina. Saímos devagar. Passamos pelo portão sem dizer nada. A rua ainda estava escura. Mas agora havia luz dentro das casas.

Eu não perguntei nada. Não precisava.

E minha mãe, talvez sem saber, me ensinou que às vezes o silêncio é o único jeito de se lembrar de algo sem quebrar.

Risos. E assim se vivia ou se aprendia a viver nos anos 80 e 90.




Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

  Estava na oitava série — esse tempo em que o corpo já pressente que algo vai mudar, mas a alma ainda brinca com a inocência. Sempre me sentava na primeira fileira da última fileira, entre a segunda e a terceira cadeira, bem ali, perto da mesa dos professores. Nem tão perto a ponto de ser notada demais, nem tão ao fundo a ponto de ser esquecida. Um meio-termo seguro, talvez. Naquela fileira, à minha frente, sentava uma menina cujo nome me escapou da memória — como nomes às vezes escapam da vida, mas os rostos, não. Ela era pequena, quase frágil, mas havia uma força silenciosa que a acompanhava. Tinha cabelos longos e enrolados, num tom que me lembro como “loiro ouro envelhecido”. Viera de outro estado, e com ela aprendi uma expressão que até hoje me arranca um sorriso: “cor de burro quando foge”. Assim ela chamava os próprios olhos. Hoje, com a delicadeza da revisão, eu diria que eram cor de mel — e mel raro. Ela foi uma das minhas primeiras referências de autoestima, fora do abri...

🍀Entre a ponte e o colo: memórias que o vento não levou

  Você disse que não sabe se não… Mas também não tem certeza que sim. Era ouvindo essa dúvida melódica de Djavan que eu atravessava a ponte Rio-Niterói. Cada vez parecia a primeira, com os olhos lavados de maresia e um coração que se abria inteiro diante da cidade que se aproximava como uma promessa. O carro seguia, e eu sentia: tem algo místico entre essas duas margens. Uma espécie de linha tênue entre o que se vive e o que se imagina — como as novelas de Manoel Carlos que embalavam minhas tardes de menina. Eram tantas Helenas que um dia comecei a achar que era uma delas. A Helena que olhava o avião descendo no Santos Dumont com o mesmo encanto de quem acredita em finais felizes. A Helena que passava pelo centro de Niterói, pelas barcas, pelo shopping, com o peito cheio de pequenos enredos. Que atravessava de catamarã com a alma esvoaçante. Que cantava Cassia Eller em silêncio no bairro das Laranjeiras: "Aperto o seu andar, não vejo a hora de te encontrar..." Tudo era p...

💙As Hortênsias Azuis

  Viajamos como quem retorna a um sonho antigo. Era a casa da minha avó. A primeira vez desde que minha mãe havia mudado de estado — com meu pai, comigo ainda bebê nos braços. Eu tinha dois anos quando partimos. Agora, com pouco mais de cinco, retornava não só à casa, mas a alguém de quem eu não tinha um forte registro. E ainda assim, algo em mim já reconhecia tudo aquilo. O corpo pequeno de criança sabia — como quem se lembra por dentro. O quintal era um poema empoeirado de verão. Pequeno parreiral, uvas miúdas de um roxo quase negro, doces como o riso da infância, recém-colhidas, quase derretendo na língua. Tinha também as hortênsias… ah, as hortênsias. Um azul quase impossível, como se fossem feitas da matéria dos sonhos bons. Como se cada florzinha — tão minúscula — fosse uma gota de amor que só as avós sabem cultivar. Ali também morava um sabor que nunca mais encontrei: a geleia de uvas da minha avó. Feita daquelas mesmas uvinhas do quintal, tinha o gosto mais gostoso de ge...