💛 O Homem que Me Emprestou o Infinito
Tem dias em que o tempo faz curvas estranhas.
Ele não volta, ele dobra.
E nessas dobras, surgem rostos.
Rostos que ficaram presos lá no fundo da lembrança, como se tivessem sido esculpidos na memória com uma navalha suave.
Hoje, sem aviso, me lembrei de Ivander.
Demorei para lembrar o nome. Mas o rosto... o rosto nunca foi embora.
Altivo. Silencioso.
Tinha aquele olhar de quem sabe, não porque leu, mas porque viveu. Ou talvez porque se calou o bastante para ouvir o que o mundo prefere sussurrar.
Era desses homens que andam pelas bordas do barulho.
Falava para dentro.
Pensava longe.
Foi ele quem me emprestou o infinito.
Não chamou assim, claro.
Disse apenas “manuscrito”. Papel velho, puído, cheirando a outros tempos. Capa improvisada.
O livro o Caiballion.
Mas foi ao abrir aquelas páginas, enquanto esperava clientes, num evento cheio de brilhos artificiais, no Jockey Club, entre stands chiques e brindes fáceis, que alguma coisa em mim que estava trancada... se rompeu.
Folheei. E o vento veio.
Literalmente.
Como se o mundo, de forma gentil, decidisse virar a página comigo.
E virou.
Enquanto lia sobre o micro que espelha o macro, ouvi pela primeira vez aquela músicaque se espalhava como uma promessa da nova MPB:
“Não tem mais jeito... acabou... boa sorte...”
Vanessa da Mata, ainda anônima, cantava como quem me entregava a alma por através das caixas espalhadas por todos os lados no evento.
Tudo ao redor era beleza e transição.
E eu ali — vendendo sabedoria por moedas, comprando cafés apressados e tentando decifrar o Rio.
Mesmo ferido, ele ainda parecia poesia de cartão-postal. Bem novelas do Maneco.
E ele, Ivander, em silêncio, me deu uma ponte.
Uma travessia entre espadas, meditações e alquimias.
Foi esse gesto sutil que me levou à Rosa Cruz.
Foi ele, sem saber, ou sabendo, afinal o acaso não existe, quem me apresentou à próxima versão de mim mesma.
Anos depois, recebi a notícia.
Fria. Seca. Errada.
Morta.
Ivander havia sido confundido.
Assassinado pelas costas.
Sem chance. Sem voz.
E o mais cruel: deixou uma bebê.
Uma rainha em berço de pano.
Tinha quase nada.
Mas viviam como quem tem tudo, quando o tudo é alma.
Nunca lhe agradeci, mudança de estado.
Não por falta de tempo.
Por mudanças de curso de vida.
Ou por essa ilusão covarde de que a vida sempre oferece uma segunda chance.
Não ofereceu.
E hoje, escrevo isto como quem tenta costurar gratidão com palavras.
Como se cada linha pudesse tocar o lugar onde ele esteja agora.
E dizer:
Aquelas folhas soltas eram mapas.
Aprendemos a abrir portais sem fazer alarde.
Me mostrou que a verdadeira nobreza não posa, apenas age.
E eu, que fui profundamente transformada, me elevo em gratidão.
Ivander era feito de silêncio e fundamentos.
Um ser raro: desses que plantam estrelas no chão duro dos dias.
A morte o confundiu.
Mas a vida, a vida verdadeira, nunca o confundiu com menos do que ele foi e ainda é.
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